Autocompromisso ou conversa fiada!

Em minhas interações com Conselhos, Comitês e C-Levels, percebi muito cedo que há algo profundamente magnético em líderes que fazem o que precisa ser feito.

Eles não são, necessariamente, os mais carismáticos da sala. Às vezes, sequer são os mais técnicos. Mas são, invariavelmente, aqueles em quem se pode confiar quando o bicho pega.

Quando o deadline aperta, quando o time entra em pânico, quando o cliente ameaça ir embora ou quando a estratégia precisa ser desdobrada. Eles não recuam. Fazem o que precisa ser feito de maneira consistente, mantendo hábitos firmes.

Esses líderes têm algo em comum: uma identidade forte.

Não falo aqui da identidade no sentido raso — aquela descrição no perfil do Linkedin com nome, cargo e empresa. Estou falando da identidade como essência: o conjunto de valores, crenças e compromissos que uma pessoa cultiva com tanto afinco que passam a ser reconhecidos por todos ao redor. Identidade como assinatura. Como marca registrada e capaz de criar movimentos na vida.

Nos últimos sete anos, eu e meus sócios fizemos um longo trabalho de observação fenomenológica sobre centenas de projetos desenvolvidos com nossos clientes. Projetos sobre Cultura, Liderança e Equipes de Alto Desempenho e descobrimos quatro elementos num padrão que nomeamos como Nexo Adaptativo (spoiler: está virando um livro):

1. Estalos – momento em que a inquietude gera energia para a criatividade, ideias, hipóteses, possibilidades ou algo parecido. Nascem vontades, emoções e sensações de potência para o movimento.

2. Autocompromisso – capacidade de fazer o que precisa ser feito com esperança, consistência e orientado pela própria identidade.

3. Estrutura – capacidade de organizar de maneira lógica, racional e simples sobre como realizar os movimentos.

4. Conexões – capacidade de construir fortes rede de apoio aos movimentos por meio de influência e persuasão. Pessoas que apoiem o movimento diante dos obstáculos e vitórias.

Atualmente, estou entrevistando Executivos para aprofundar esse padrão, escutar suas experiências, crenças, medos e ambições. Quero saber deles “o que diabos têm os líderes que movem as coisas no mundo corporativo”, o que diferencia os líderes que fazem o que precisa ser feito daqueles que ficam pelo caminho.

Nesse texto meu foco é no elemento mais sensível: o autocompromisso.

A infância da identidade

Desde crianças, vamos moldando quem somos com base nas referências que temos. Aprendemos a dizer “eu sou assim” ou “eu sou do tipo que…” com base no que funcionou, no que nos validaram ou no que admiramos nos outros. Com o tempo, essas frases viram filtros – a forma como interpretamos o mundo e, principalmente, a maneira como agimos nele.

E uma identidade forte não é um dom genético. É construída. Escolha por escolha. Decisão por decisão. Tomando riscos, falhando, realizando e aprendendo, cada dia mais, sobre nós mesmos.

Líderes com identidade forte carregam consigo uma narrativa interna muito clara sobre quem são — e sobre quem se recusam a ser. Não mentem para si mesmos. Não se traem. E isso faz toda a diferença.

Autocompromisso: a raiz de tudo

A base dessa identidade é o autocompromisso. Ou seja: a capacidade de assumir um compromisso consigo mesmo e honrá-lo, mesmo quando ninguém está olhando, mesmo quando os desejos ou qualquer outro estímulo externo tente mudar o foco..

É fácil ter compromisso quando temos plateia ou algo que gere prazer. Difícil é manter a rota quando está tudo dando errado, quando ninguém aplaude, quando parece que ninguém entende. E é aí que a identidade aparece.

O líder que tem autocompromisso forte levanta cedo quando quer, escuta críticas mesmo doendo, corrige a rota mesmo depois de muito tempo investido. Ele sabe que a escolha de desistir de si mesmo — de trair seus próprios valores — cobra um preço alto: a perda da própria identidade.

O brio é fortalecido ao longo do tempo e a capacidade de lidar com o fracasso é demonstrada por uma enorme agilidade emocional.

Essa ideia é apoiada por estudos como o de Shamir e Eilam (2005), que propuseram a teoria da liderança como expressão da identidade. Segundo os autores, líderes autênticos não atuam com base em papéis esperados, mas sim a partir de um forte senso de self, sustentado por valores centrais que guiam suas ações com coerência e resiliência.

Shamir, B., & Eilam, G. (2005). “What’s your story?” A life-stories approach to authentic leadership development. The Leadership Quarterly, 16(3), 395–417.

Pêndulo: a fraqueza da identidade

Schopenhauer dizia que “a vida oscila como um pêndulo entre a dor e o tédio”. Um conceito perturbador, pois se queremos algo, sofremos por não ter. Se o conquistamos, enjoamos rápido e o ciclo recomeça num espécie de maldição sem fim.

Para ele, esse era o destino inevitável de quem vive movido pelo desejo, por objetivos, metas ou qualquer outro instrumento de motivação extrínseca.

O que descobrimos é que isso não se aplica a todo mundo, pois encontramos vários líderes fora desse pêndulo. Gente que lidera por identidade, não por tapinhas nas costas, não por plateia ou qualquer outro tipo de recompensa material.

Essas pessoas têm algo raro: identidade forte e autocompromisso profundo.

Elas não oscilam entre o “falta algo” e o “já cansei disso”. Operam a partir de um eixo interno, sem trair quem são ou decidiram ser – não por teimosia, mas por uma estrutura psicológica flexível e repleta de hábitos coerentes.

Algumas pesquisas de Charles Snyder, por exemplo, demonstram esse fenômeno: Snyder, C. R., et al.(2002). Hope Theory: A Member of the Positive Psychology Family. In Handbook of Positive Psychology.

Outro estudo clássico, de Blasi (1984), explica que quanto mais nossos valores e crenças estão integrados à nossa identidade, mais agimos de forma coerente, mesmo sob pressão ou cansaço.

Blasi, A. (1984). Moral Identity: Its Role in Moral Functioning.

O líder que vive no pêndulo age pelo que espera ganhar, não pelo que acredita. Muda de direção a cada vaia, a cada delay e a cada crítica. E no fim, não sabe mais quem é — só sabe o que quer evitar.

Hábitos fortes são estruturados sobre a identidade, fazendo com que o indivíduo aja firmemente, tendo esperança não como ilusão, mas como alimento da direção. Isso, porque saiu do pêndulo e ancorou no próprio eixo.

Esperança: a fortaleza da identidade

A esperança não é apenas um sentimento bonito, mas o combustível invisível do autocompromisso. Ela é um processo cognitivo ativo, que influencia diretamente a persistência, a resiliência, a antifragilidade ou qualquer outro elemento que alimente o esforço contínuo diante de obstáculos ao longo do tempo.

Quando uma pessoa acredita que existe uma chance real de dar certo, ela:

· Tende a persistir mais tempo;

· Se compromete mais profundamente com os próprios objetivos;

· Tolera melhor o desconforto e a demora na recompensa;

· Tem maior clareza sobre os riscos que precisa tomar.

Ou seja, a esperança sustenta o autocompromisso.

Por exemplo, um dos estudiosos da esperança é Charles R. Snyder (Hope Theory), que definiu esperança como a combinação de:

1. Objetivo claro (para onde quero ir);

2. Caminhos percebidos (quais rotas posso usar);

3. Agência pessoal baseada em identidade (minha crença de que posso).

Quando essas três coisas estão presentes, a pessoa não só se compromete — ela se engaja com intensidade inabalável.

A ausência de esperança leva à desistência precoce. Quando a pessoa acredita que “não vai dar certo de qualquer forma”, o cérebro entra em modo de economia de energia. Ele desliga a motivação, reduz o esforço e busca recompensas imediatas (fuga, distração ou conforto).

Esse mecanismo foi confirmado por estudos de neurociência: quando o cérebro não enxerga perspectiva de sucesso, ele para de liberar dopamina durante o esforço — ou seja, não há prazer em tentar, só desgaste.

Podemos confirmar essa perspectiva, por exemplo, nos textos de Salamone, J. D., & Correa, M. (2012). The mysterious motivational functions of mesolimbic dopamine.Neuron, 76(3), 470–485.

Coragem: a expressão da identidade em movimento

Não existe identidade forte sem coragem. Insisto que coragem antecede a confiança e não o inverso.

Coragem não é ausência de medo, mas a decisão de agir com ele. E, para um líder, essa decisão é diária. Coragem para dar feedbacks difíceis sobre comportamentos e desempenho.

Coragem para dizer “não” quando a maioria quer “ser gente boa”. Coragem para bancar ideias impopulares. Coragem para assumir erros e tomar novos riscos. Coragem para proteger o time — e, às vezes, coragem para cobrar o time com firmeza.

Cada vez que um líder escolhe agir com coragem, reforça quem ele é. Cada vez que escolhe a conveniência, enfraquece a própria identidade. Parece pouco, mas não é. Como a identidade é acumulativa, ela se fortalece — ou se corrói — no detalhe.

E isso também é respaldado pela ciência. Pesquisas sobre identidade e comportamento moral, como as de Blasi (1984), mostram que quanto mais as pessoas integram seus valores à própria identidade, mais provável é que tomem decisões consistentes com esses valores — mesmo sob pressão.

Blasi, A. (1984). Moral identity: Its role in moral functioning. In W. M. Kurtines & J. L. Gewirtz (Eds.), Morality, moral behavior, and moral development (pp. 128–139). Wiley.

Esses líderes não se agarram às desculpas verdadeiras (leiam mais sobre esse tema no nesse artigo  – episódio 2) e criam hábitos que provam a coerência da própria identidade.

Líderes que movem

Líderes que fazem as coisas aconteceram vivem de acordo com a própria identidade — e não de acordo com o que esperam deles — inspiram confiança. As pessoas podem até não concordar com suas decisões, mas sabem de onde elas vêm. Sabem que não há jogo duplo. Que não há teatro. Isso é raro. E valioso.

Além disso, esses líderes se tornam espelhos. Gente que, só de estar por perto, convida os outros a serem melhores. Porque nada é mais poderoso do que testemunhar, ao vivo, alguém vivendo com integridade.

No fim das contas, os grandes líderes não são apenas pessoas que tomam boas decisões. São pessoas que sabem quem são. Que conhecem seus valores, têm um pacto interno com a própria integridade. Que não se vendem, não se perdem e não se calam quando o mundo exige posicionamento.

Eles são líderes porque sua identidade os obriga a liderar.

E é por isso que, quando todos param, eles continuam.

Não porque são super-heróis, super-dotados ou iluminados. Mas porque, simplesmente, não saberiam ser de outro jeito.

Talvez, fortalecer a própria identidade seja uma questão de esvaziar, buscar dentro, deixar pelo caminho o que está sobrando e não se preocupar com o que está faltando.

Enfraquecer comportamentos, capacidades ou hábitos que foram importantes até aqui, para que, mais leve, possamos deixar movimentos genuínos nascerem pela essência. Autocompromisso não nasce daquela lista de promessas vazias “de final de ano” (emagrecer, fazer inglês, subir o Everest, parar de beber etc). Isso é conversa fiada!

Alcir Miguel

Sócio e executivo de negócios na Movidaria.

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